Dory poderia ter morrido no bagageiro do ônibus

 A advogada Flávia Lopes mora em Belo Horizonte e no último ano viajou para São Paulo 10 vezes. Em todas elas acompanhada da cachorra sem raça definida Dory. Experiente, Flávia sabe que deve levar a carteira de vacinação, atestado veterinário e bolsa de transporte de sua companheira canina – de 8 quilos – que, diga-se de passagem, é uma viajante tranquila, a qual dorme o tempo todo e só acorda nas paradas para fazer suas necessidades fisiológicas. Fato que gera surpresa coletiva, pois nenhum passageiro percebe sua presença no salão (termo utilizado para se referir a parte interna do ônibus), apenas quando está fora do ônibus. 

Matéria publicada no Estadão.

A cachorrinha Dory que foi impedida a viajar no ônibus São Cristovão. Foto: Arquivo pessoal

Dory é equiparada a uma mala 

Na sexta-feira (17/3) era para ser mais uma viagem corriqueira na vida delas, que estavam com a passagem comprada para Divinópolis, interior de Minas Gerais, onde a família da Flávia mora, se não fosse o motorista da viação São Cristóvão que não a deixou embarcar. “Entrei no site da companhia e não tinha nenhuma informação sobre transporte de animais, tentei entrar em contato pelo telefone, mas ninguém atendeu. Pensei: estou dentro das normas e tenho todos os documentos comigo, não terá problema”, explica Flávia.

Porém ao entrar no ônibus e informar que tinha Dory consigo, já entregando os documentos habitualmente exigidos por outras viações, foi surpreendida pela negativa do motorista, que foi enfático ao dizer que a única opção era colocá-la no bagageiro. Flávia lembra bem de suas palavras: “Aqui ela não entra. Realmente, tem algumas viações que aceitam essas coisas, mas aqui a gente não aceita não. Se quiser, ela vai no bagageiro”. 

Atônita, Flávia ainda escutou do funcionário da São Cristovão: “E aí, vai ou não vai?”. Indagação que respondeu categórica: “Eu vou andando com a minha cachorra 500 quilômetros, mas não coloco no seu bagageiro”. E, assim, deixou a rodoviária sentindo-se revoltada com a forma que foram tratadas, pois a Dory foi comparada à uma mala, a um mero objeto sem importância e não um ser vivo.  

Flávia e Dory. Foto: Arquivo pessoal.

A quase tragédia

Por sorte, a proposta indecorosa do motorista que, obviamente, é uma pessoa despreparada por uma empresa desatualizada não foi aceita,  caso contrário, a história dela poderia acabar como a dos cães embarcados no bagageiro da Expresso Nordeste em Cascavel, em novembro de 2021, que chegaram mortos ao destino final. 

Causa da morte: hipertermia e ignorância

Os dois cães que foram levados dentro de caixas de transporte no bagageiro da viação Expresso Nordeste, de Cascavel à Campo Mourão, em novembro de 2021, foram transportados por indicação da própria empresa.  “A família, que não tinha dinheiro para comprar outra passagem ou ficar mais tempo, aceitou”, relata a advogada e presidente da comissão de direito animal da OAB de Cascavel, Evelyne Paludo.

O caso não teve ação civil, pois não foram identificados os passageiros que tiveram seus cães mortos pela ignorância e falta de informação correta, mas sim a denúncia de pessoas que presenciaram o embarque forçado e a chegada dos animais mortos.

Evelyne levou o caso para a Transitar, autarquia municipal responsável pelo transporte terrestre, visando alertar as demais empresas rodoviárias do ocorrido. “O calor insuportável do oeste do Paraná, o bagageiro sem controle de temperatura e ventilação, o barulho absurdo e as malas, que não ficam presas e batem nas caixas provocaram a morte dos cães”, relata Evelyne.

O que fala a Lei

A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) normatiza o transporte em rodovias brasileiras. O advogado Leandro Petraglia, especializado em direito animal, cita a resolução 1383: “O artigo 7, V diz que se o animal causar problema pode ser desembarcado. Em uma leitura inversa, entendemos que se ele pode ser desembarcado, quer dizer que em algum momento embarcou. Ou seja, é permitido animais a bordo de ônibus, porém cada estado e município criam suas próprias normas, resultando em um emaranhado de regras. Em uma mesma viação há lei municipal, intermunicipal e federal”. 

O deputado federal Pedro Aihara concorda com Petraglia, mostra repúdio ao que aconteceu com Flávia e escreve para o ministro da Infraestrutura Renan Filho pedindo a unificação da lei e mais respeitos aos animais.  “Os animais precisam ser tratados com todo respeito e dignidade. Cada vez mais, a causa animal ganha legitimamente atenção e espaço, dando passos importantes para o bem-estar e proteção dos animais e, por isso, enviei um ofício endereçado ao Ministério da Infraestrutura, comandado por Renan Filho, para que providências sejam tomadas. A matéria precisa urgentemente apresentar regulamentação condizente com as novas realidades das famílias multiespécie”, posiciona-se. 

O que a São Cristovão diz sobre o caso

Entramos em contato com a São Cristovão sobre o caso e publicamos sua resposta em paralela a citação da ANTT sobre o tema: “a orientação repassada pela ANTT é que o transporte se dê no próprio bagageiro, a se evitar o risco de causar algum desconforto aos demais usuários”. Porém, ao consultar o site da agência reguladora encontramos a recomendação:  “O transporte de animais será realizado no salão do veículo, está autorizado o embarque de animais sem cobrança de passagem. Serão aceitos até 02 (dois) contêineres por viagem, sendo apenas 01 por passageiro. O animal não poderá ocupar uma poltrona e o container deverá ser alojado no assoalho do veículo, próximo (abaixo da perna) do passageiro restrito ao espaço físico da poltrona do mesmo passageiro e lá deverá permanecer até o fim da viagem”.

Alerta

Os bagageiros dos ônibus não têm refrigeração como o dos aviões. A caixa de transporte é colocada sem a mínima proteção, portanto, vai sacolejando entre as malas. Ou seja, nunca, em hipótese alguma, transporte seu cachorro dessa forma. Inclusive, as empresas de transporte rodoviário deveriam ser proibidas, por lei, a darem uma sugestão tão inescrupulosa como essa.

Uma coisa é certa: as viações estão mais perdidas do que as companhias aéreas, que pelo menos têm regras mais próximas e unificadas, e precisam de ajuda imediata. Certamente não perceberam o mercado imenso e promissor de passageiros que precisam (e querem) viajar com seus cães e gatos. Isso que nem falamos ainda sobre cães de porte maior, que evidentemente, abordaremos em breve.

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