Até então, no meu imaginário, focinheira era um item utilizado apenas por cães ferozes. Veja só, quanta ignorância da minha parte! Quando fiz uma enquete pelo Guia Pet Friendly para entender o que as pessoas sentem a respeito o uso da focinheira descobri que 90% dos entrevistados não usam, mas que 58% estariam dispostos a usar e que 52% se sentiriam mais seguro se um cão com uma mordida potente estivesse usando uma ao cruzar com o seu cachorro.
Matéria publicada no Estadão.
Há quem considere a focinheira uma ofensa, os que usam e gostam e quem perdeu um pet fruto de uma mordida potente. Antes de chegar a uma conclusão é importante falar com franqueza, entender a natureza dos cães, estar consciente do que a lei fala a respeito e desmistificar tabus.
Visão profissional
A educadora canina Manu Moraes, da escola Dog Urbano, considera a focinheira um acessório necessário, útil e importante, o qual garante a segurança do tutor e do cachorro. “A focinheira evita que o cachorro morda outro animal ou pessoa em situações corriqueiras como passeios, trânsito no elevador e condomínio e procedimentos no veterinário.
“Evita que o tutor se envolva em um processo judicial porque o cachorro machucou outro cão, criança ou adulto.”, salienta Manu, que também ressalta a importância do cão estar acostumado a usá-la.
Para a educadora, é um equipamento que não afeta a sua qualidade de vida e deixa o tutor seguro e tranquilo. Segundo Manu, o grande problema está na imagem preconceituosa que se criou em torno dela: “As pessoas a relacionam como a mordaça e entendem como algo que faz mal para o cachorro”, lamenta.
Qual cão deve usar
O que é questionado pelos tutores de cães com potencial de mordida forte é o fato de algumas raças serem estigmatizadas. Eles opinam que o uso de focinheira em um cão não deve acontecer pela raça e sim pelo seu comportamento. Realmente há cães de raças de pequeno porte que são muitos mais reativos do que os de médio e grande porte, o que difere entre eles é que a mordida de um chihuahua pode doer, mas não matar.
Quem não é a favor
A advogada Viviane Vieira é tutora da shar pei Lily e posiciona-se contra o uso da focinheira: “Deve ser um incômodo muito grande. Se o cachorro não está assustado, passa a ficar. Se a pessoa está pondo no cachorro dela, então põe nela para ver se é bom. Não deve ser agradável. Imagina se vem outro cachorro para brigar? Seu cão não poderá se defender, ele ficará refém de uma focinheira”, argumenta.
Patrícia, Zeus e Khora
Já a administradora de empresas Patrícia Balsini Aguiar, que tem o american Staffordshire Zeus e a american pit bull Khora, fez da focinheira sua maior aliada. “Ao comprá-los eu sabia que haveria muito preconceito com as raças”, relata. Quando eram filhotes, Patrícia os levava para passear com o intuito de socializá-los e desde esta época recebia olhares desconfiados, além de ver as pessoas atravessando a rua.
“Um dia percebi que um carro de polícia me acompanhava. Resolvi usar a focinheira para não ter problema com a lei”, desabafa. Foi, então, que fez o curso de educação canina da Manu Moraes e adaptou o Zeus e a Khora gradativamente à focinheira, sempre relacionando o uso a coisas boas e aos momentos de treino, que fazem parte das aulas.
“Apresentei a focinheira de forma positiva, como algo normal na vida deles. No começo eles não andavam ou tentavam tirar. Foi um processo lento. Primeiro dentro de casa e depois no quintal. Hoje eles usam nos passeios à beira-mar, em trilhas, parques e no veterinário”, ensina.
Se algumas pessoas consideram a focinheira ofensiva e indício de agressividade, a experiência da Patrícia mostra o oposto. Ela relata que quando seus cães estão em um espaço público usando as focinheiras, as pessoas se aproximam, elogiam e pedem para fazer carinho.
Outro fator decisivo na escolha pela focinheira veio proveniente de dois casos de ataque de cães ao Zeus. Consciente da força dele, ela sabia que se fosse se defender, machucaria o outro cão e a culpa possivelmente seria atribuída a ele. “Ele aproveita muito mais o passeio com a focinheira, pois eu transmito confiança. O que para muitos é maus-tratos, para ele é felicidade”.
Carolina e Arthur
O pastor alemão Artur chegou na casa da relações públicas Carolina Falaschi com 39 dias. Filho de cães que trabalhavam na polícia de Minas Gerais, veio para ser um cão de guarda e recebeu adestramento para proteger e obedecer seus tutores. A focinheira para ele foi uma espécie de segunda chance, pois possibilitou a Carolina fazer passeios com o Arthur sem medo de um acidente fatal.
Diferentemente da Patrícia, ela opina que a focinheira é vista com desconfiança pelas pessoas: “eu sofro dois tipos de preconceito: de ter um pastor alemão e um pastor alemão que usa focinheira”. O que elas têm em comum: concordam que as focinheiras as deixam mais tranquilas e, consequentemente, seus cães. “Outro dia, esqueci a focinheira e saí para o último passeio do dia pelo condomínio onde moramos. O Arthur parecia outro cachorro, muito mais tenso”, avalia.
Assim como o Zeus e a Khora, o Arthur teve uma adaptação lenta. A Carolina levou dois meses buscando relacioná-la a coisas boas e prazerosas como brincadeiras e petiscos. Por sorte, quando ele teve uma torção gástrica e precisou ser manipulado pelo veterinário, estava acostumado à focinheira e foi bem menos estressante.
A focinheira certa
Existe uma unanimidade entre Manu Mores, Patrícia e Carolina em relação ao tipo de focinheira a ser utilizada: todas concordam que a melhor marca do mercado é a Baskerville, do inglês Roger Mugford, considerado o pai da psicologia canina na Europa, que adestrou alguns cães da rainha Elisabeth.
Mugford criou uma focinheira onde o cão pode arfar, comer, beber e latir com conforto. A única coisa que ele não consegue fazer é morder. “O animal agressivo, que morde outros cães e pessoas, é condenado a viver no fundo de casa separado das demais pessoas da casa. Também há o pequeno que morde o funcionário do banho e tosa. Qualquer cão que venha a reagir de forma agressiva pode precisar da focinheira”, explica Sergio Gomes, da importadora Lumare, que distribui a marca no Brasil.
Ela é considerada uma focinheira humanitária e apresentada em 6 tamanhos, sendo que a mais vendida no Brasil é a número 4 (R$ 180,00), utilizada por cães que pesam entre 20 e 30 quilos.
Natacha e Margot
O husky siberiano Margot é o primeiro cachorro da especialista de planejamento e controle financeiro da Allianz Natacha Calazans, que mudou-se para Espanha em novembro de 2021: “Fui transferida para Barcelona pela minha empresa e a Margot tem sido meu suporte emocional e companhia”, comenta.
Ciente da energia de um husky, a Margot foi treinada para gostar da focinheira. No começo, colocava petiscos dentro dela. Gradativamente, a vestiu. No final atrelou o uso a passeios de carro, que são os preferidos dela.
Hoje, em Barcelona, colhe os frutos do treino, pois quando elas usam o metrô (que obriga o uso de focinheira), a Margot não estranha seu item de passeio. A Natacha relembra um caso que usa como justificativa para seus cuidados: “Uma vez um grupo de 5 crianças vieram tocar na Margot, uma delas a apertou um pouco mais forte. Ela deu um gritinho e a criança começou a chorar. Se estivesse sem focinheira teria sido um problema, ainda mais que eu sou estrangeira. É como usar cinto de segurança: usamos esperando não precisar”.
Carla e Petrikas
No dia 2 de maio de 2021, a esteticista Carla Petrikas caminhava com a shitzu Britt pelo jardim do crematório da Vila Alpina, em São Paulo, quando viu uma moça, com um cão da raça rottweiller, sentada no gramado. Quando estava a dois metros de distância deles, o cachorro se soltou e atacou a Britt, que não morreu na hora. Ela foi encaminhada para o veterinário, ficou internada e faleceu naquela mesma noite.
A tutora do rottweiller prestou socorro, disse que ia arcar com os R$ 3 mil de despesas, pagou as três primeiras prestações e comunicou que não poderia seguir arcando com o restante. Carla, que havia registrado um boletim de ocorrência na ocasião, entrou com um processo e o caso está sendo discutido na Justiça.
Lei e penalidades
A advogada Gisele Espíndola de Moura traduz a lei estadual de São Paulo 11.531/2003: “No caso de um cachorro, independente da raça, causar danos a pessoas ou animais, o tutor responderá criminalmente e civilmente pelos seus atos e a parte lesada deverá ser indenizada”.
É justamente isso que faz Carolina colocar a focinheira no seu cachorro: “Quando me perguntam se o Artur, usando focinheira, poderia se defender de um ataque, respondo que não. Sei que sua vulnerabilidade sai ‘mais barato’ do que ele arrancar o braço de uma pessoa e eu ter que responder judicialmente”, desabafa.
Na Espanha, existe um seguro de responsabilidade civil que oferece cobertura caso um cachorro machuque uma pessoa ou outro animal. Mesmo a Margot sendo sociável e a Natacha optando pelo uso da focinheira, ela contratou o serviço.
Em São Paulo, as raças pit bull, mastim napolitano e rottweiller são obrigadas a usar focinheira. Obrigatoriedade que rende protestos por parte dos tutores de pit bulls bem socializados. O grande problema está em distinguir quem é quem.
Generalizar é complicado e, muitas vezes, injusto, mas o que falar perante a morte da cachorrinha Britt? O bom senso aplicado por Patrícia, Carolina e Natacha é louvável. O aval de que a focinheira não afeta a qualidade de vida do cachorro dado pela educadora canina Manu Moraes joga uma luz sobre os fatos. O próximo passo é parar de demonizar a focinheira, não restringi-la a raças e, sim, a comportamentos reativos, independentemente de porte, e quem sabe transformá-la em um instrumento de inclusão? Um tema a se pensar.